Parte I
O rock não teria tido o mesmo impacto socio cultural entre os jovens da segunda metade da década de 1950 e da primeira metade da década de 1960 se já tivesse nascido sob o signo da pretensão poética. Se os filhos ficavam excitados e os pais, amedrontados, era porque Elvis Presley sacudia a pélvis daquela lasciva maneira africana, Little Richard urrava "A-wop bop-a loo-bop, a-wop bam-boom! Tutti Frutti, al-rudy" como se fosse uma bateria desenfreada, e Chuck Berry louvava o rock'n'roll acima do jazz, das sinfonias, do country, do tango, do mambo. Como antes acontecera com o jazz e depois aconteceria com o funk e o rap, o racismo americano se manifestaria na forma de uma cruzada moral, de repulsa ao sexo.
Na reprimidíssima década de 1950, não era necessário ser sexualmente
explícito para suscitar a antevisão de prazeres proibidos. A combinação
entre carrões envenenados e romances infelizes aparecia, por exemplo, em
Maybellene, de Chuck Berry, cuja refrão dizia: "Maybellene,
por que você não pode ser fiel? Você voltou a fazer as coisas que
costumava fazer." Essas coisas, à época, não precisavam ser ditas para
serem censuráveis. A batida frenética dizia tudo. O meio era a mensagem.
A imagem de rebeldia associada ao rock em filmes como Sementes de Violência (1955) ou No Balanço das Horas
(1956) tornou-se tão forte que resistia ao evidente bom-mocismo de Bill
Haley e Seus Cometas, presentes em ambos. As canções entoadas por Elvis
também não eram especialmente selvagens. O que perturbava a ordem era a
boa aparência, o rebolado, a voz de negro num branco. As letras,
portanto, não iam além de garotas, garotas, garotas. Isso fez alguns
observadores confundirem o rock com outros modismos musicais que, em
décadas anteriores, haviam cutucado os hormônios da América branca e, de
carona em sua poderosa indústria cultural, os hormônios de todo o
Ocidente cristão. Quando Elvis foi enquadrado no serviço militar, então,
o bicho parecia domado.
Nem mesmo ao final da primeira fase dos Beatles, com o já musicalmente brilhante álbum Revolver
(1966), as letras possuíam a capacidade de funcionar sem a companhia da
música. Qualidade que conquistariam conforme, "desafiados" por seu
ídolo Dylan, John Lennon e Paul McCartney se dedicassem a torná-las mais
significativas, casos de She's Leaving Home ou Blackbird.
O repertório inicial dos Fab Four fazia cândidas declarações de amor,
externando o desejo de pegar na mão na menina ou, no máximo da ousadia,
se tornar o homem dela. Fosse como fosse, o rock'n'roll era sobre
coração e sexo, não cérebro. Até hoje há compositores bons na pregação
de que a música deve ser, antes de tudo, diversão. Certas bandas de hard
rock ou heavy metal, como o AC/DC, eternizam em poucas linhas o
sentimento de que a vida é curta, e é preciso vivê-la rapidamente.
Parafraseando Lobão, os livros na estante - com antologias de letras de
canções - não teriam tanta importância.
Em seu primeiro filme como diretor, Ricardo III - Um Ensaio
(1996), o ator Al Pacino a certa altura conjecturava se Shakespeare já
não havia pensado tudo o que o homem poderia pensar. Em relação a Bob
Dylan o sentimento é mais ou menos o mesmo. Abrir ao acaso o calhamaço
que é Lyrics 1962-2001, nunca editado no Brasil, se assemelha a
jogar I Ching. A poesia de Dylan funciona tanto como arte divinatória
como gotas espessas de sabedoria. Em meio século de carreira, ele se
pronunciou sobre virtualmente tudo o que há para se pronunciar:
política, amor, guerra, ecologia, religião, morte, arte. E, quando o
fez, fê-lo com a autoridade moral de profeta que atravessou várias
crenças e descrenças.
Dylan despontou para Nova York e para o mundo como um trovador folk.
Nesta condição, participou do comício de 28 de agosto de 1963, em
Washington, no qual Martin Luther King Jr. contou a 200 mil
manifestantes pelos Direitos Civis o seu célebre sonho: "Um dia meus
quatro filhos pequenos viverão num país em que não serão julgados pela
cor de suas peles, mas pelo conteúdo de seu caráter." De alguma forma, a
poderosa retórica batista de Luther King Jr. já ressoava pela obra
deste judeu de Duluth, Minnesota, que dois anos antes largara a
universidade ainda como calouro e fora pregar o próprio evangelho pelos
bares do Greenwich Village. Esta, porém, não seria sua influência mais
óbvia. Dylan idolatrava Woody Guthrie, que escavara a canivete no tampo
de seu violão a frase "Esta máquina mata fascistas", e com certeza lera
com atenção poetas beat como Allen Ginsberg.
Havia ainda, é claro, o fascínio primeiro por Dylan Thomas, tão
intenso que lhe fornecera o sobrenome artístico. Diferentemente da
impenetrabilidade da poesia do galês, entretanto, o pulo do gato de Bob
Dylan foi unir uma erudição instintiva à capacidade de comunicá-la de
forma eficiente, pop. As letras de Dylan ofereciam - e oferecem -
inúmeras camadas de interpretação e permitiam ao rock, gênero pelo qual
ele se interessara ainda antes de virar o cantor folk por excelência, a
autoconsciência da própria complexidade e importância. Dylan abandonou a
universidade, certo, mas sua obra voltou a ela pela porta da frente.
Existe uma anedota daquelas que se não for verdadeira é bem achada.
Dizem que Dylan entrou incógnito num grupo de discussões sobre suas
letras na internet. Diante de um despautério, contudo, ele não pôde
deixar de se manifestar e afirmar que não quisera dizer nada daquilo que
lhe era atribuído. Foi expulso do grupo como impostor, óbvio.
O impacto de centenas de letras como as de Blowin' In the Wind, The Times They're a-Changin', Don't Think Twice it's All Right ou Hurricane
ultrapassou as fronteiras artísticas e conquistou para o rock o
respeito de exegetas que antes consideravam aquela música sem nenhuma
relevância cultural.
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