quinta-feira, 24 de maio de 2012

A história das Letras de musica , dentro do universo Rock and Roll


Parte I

O rock não teria tido o mesmo impacto socio cultural entre os jovens da segunda metade da década de 1950 e da primeira metade da década de 1960 se já tivesse nascido sob o signo da pretensão poética. Se os filhos ficavam excitados e os pais, amedrontados, era porque Elvis Presley sacudia a pélvis daquela lasciva maneira africana, Little Richard urrava "A-wop bop-a loo-bop, a-wop bam-boom! Tutti Frutti, al-rudy" como se fosse uma bateria desenfreada, e Chuck Berry louvava o rock'n'roll acima do jazz, das sinfonias, do country, do tango, do mambo. Como antes acontecera com o jazz e depois aconteceria com o funk e o rap, o racismo americano se manifestaria na forma de uma cruzada moral, de repulsa ao sexo.

Na reprimidíssima década de 1950, não era necessário ser sexualmente explícito para suscitar a antevisão de prazeres proibidos. A combinação entre carrões envenenados e romances infelizes aparecia, por exemplo, em Maybellene, de Chuck Berry, cuja refrão dizia: "Maybellene, por que você não pode ser fiel? Você voltou a fazer as coisas que costumava fazer." Essas coisas, à época, não precisavam ser ditas para serem censuráveis. A batida frenética dizia tudo. O meio era a mensagem.
 
A imagem de rebeldia associada ao rock em filmes como Sementes de Violência (1955) ou No Balanço das Horas (1956) tornou-se tão forte que resistia ao evidente bom-mocismo de Bill Haley e Seus Cometas, presentes em ambos. As canções entoadas por Elvis também não eram especialmente selvagens. O que perturbava a ordem era a boa aparência, o rebolado, a voz de negro num branco. As letras, portanto, não iam além de garotas, garotas, garotas. Isso fez alguns observadores confundirem o rock com outros modismos musicais que, em décadas anteriores, haviam cutucado os hormônios da América branca e, de carona em sua poderosa indústria cultural, os hormônios de todo o Ocidente cristão. Quando Elvis foi enquadrado no serviço militar, então, o bicho parecia domado.

Nem mesmo ao final da primeira fase dos Beatles, com o já musicalmente brilhante álbum Revolver (1966), as letras possuíam a capacidade de funcionar sem a companhia da música. Qualidade que conquistariam conforme, "desafiados" por seu ídolo Dylan, John Lennon e Paul McCartney se dedicassem a torná-las mais significativas, casos de She's Leaving Home ou Blackbird. O repertório inicial dos Fab Four fazia cândidas declarações de amor, externando o desejo de pegar na mão na menina ou, no máximo da ousadia, se tornar o homem dela. Fosse como fosse, o rock'n'roll era sobre coração e sexo, não cérebro. Até hoje há compositores bons na pregação de que a música deve ser, antes de tudo, diversão. Certas bandas de hard rock ou heavy metal, como o AC/DC, eternizam em poucas linhas o sentimento de que a vida é curta, e é preciso vivê-la rapidamente. Parafraseando Lobão, os livros na estante - com antologias de letras de canções - não teriam tanta importância.
 
Em seu primeiro filme como diretor, Ricardo III - Um Ensaio (1996), o ator Al Pacino a certa altura conjecturava se Shakespeare já não havia pensado tudo o que o homem poderia pensar. Em relação a Bob Dylan o sentimento é mais ou menos o mesmo. Abrir ao acaso o calhamaço que é Lyrics 1962-2001, nunca editado no Brasil, se assemelha a jogar I Ching. A poesia de Dylan funciona tanto como arte divinatória como gotas espessas de sabedoria. Em meio século de carreira, ele se pronunciou sobre virtualmente tudo o que há para se pronunciar: política, amor, guerra, ecologia, religião, morte, arte. E, quando o fez, fê-lo com a autoridade moral de profeta que atravessou várias crenças e descrenças.

Dylan despontou para Nova York e para o mundo como um trovador folk. Nesta condição, participou do comício de 28 de agosto de 1963, em Washington, no qual Martin Luther King Jr. contou a 200 mil manifestantes pelos Direitos Civis o seu célebre sonho: "Um dia meus quatro filhos pequenos viverão num país em que não serão julgados pela cor de suas peles, mas pelo conteúdo de seu caráter." De alguma forma, a poderosa retórica batista de Luther King Jr. já ressoava pela obra deste judeu de Duluth, Minnesota, que dois anos antes largara a universidade ainda como calouro e fora pregar o próprio evangelho pelos bares do Greenwich Village. Esta, porém, não seria sua influência mais óbvia. Dylan idolatrava Woody Guthrie, que escavara a canivete no tampo de seu violão a frase "Esta máquina mata fascistas", e com certeza lera com atenção poetas beat como Allen Ginsberg.

Havia ainda, é claro, o fascínio primeiro por Dylan Thomas, tão intenso que lhe fornecera o sobrenome artístico. Diferentemente da impenetrabilidade da poesia do galês, entretanto, o pulo do gato de Bob Dylan foi unir uma erudição instintiva à capacidade de comunicá-la de forma eficiente, pop. As letras de Dylan ofereciam - e oferecem - inúmeras camadas de interpretação e permitiam ao rock, gênero pelo qual ele se interessara ainda antes de virar o cantor folk por excelência, a autoconsciência da própria complexidade e importância. Dylan abandonou a universidade, certo, mas sua obra voltou a ela pela porta da frente. Existe uma anedota daquelas que se não for verdadeira é bem achada. Dizem que Dylan entrou incógnito num grupo de discussões sobre suas letras na internet. Diante de um despautério, contudo, ele não pôde deixar de se manifestar e afirmar que não quisera dizer nada daquilo que lhe era atribuído. Foi expulso do grupo como impostor, óbvio.

O impacto de centenas de letras como as de Blowin' In the Wind, The Times They're a-Changin', Don't Think Twice it's All Right ou Hurricane ultrapassou as fronteiras artísticas e conquistou para o rock o respeito de exegetas que antes consideravam aquela música sem nenhuma relevância cultural.

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