terça-feira, 19 de novembro de 2013

Rock e Amizade

O rock mudou a minha vida , abriu a minha cabeça e junto com tudo isso vieram as amizades mais sinceras , um sentimento complicado de colocar em palavras.

O jornalista Cristiano Bastos ( na minha modesta opinião o Lester Bangs brazuca ) no seu blog (http://oesquema.com.br/novacarne )fez um dos textos mais bonitos sobre esse assunto , uma homenagem sincera a um grande amigo dele.



Nascido  Para Perder

A VIDA NOS DESFALCA SEM AVISAR, excluindo as melhores pessoas de nossa convivência. Uma delas foi embora esses dias. A notícia de sua morte chegou aos amigos por terceiros. Jairo William era o seu nome. Caveman, seu auto-apelido.

Morreu por causa de complicações da Aids, aos 30 anos.

É uma obrigação minha falar dele, afinal, o conheci e apresentei aos amigos meus que se tornaram os amigos dele em Porto Alegre: Carlinhos Carneiro, Marcelo Benvenutti, entre muitos outros. Jairo e eu nos conhecemos por causa do rock, essa é a verdade.

Por volta de 1992, auge do grunge, bairro Itú-Sabará, Porto Alegre, berço da banda Liverpool nos anos 60. Caveman morava com a família na parte superior do sobrado onde meu irmão, Marcelo, e eu trabalhávamos para o meu pai em sua empresa de artigos de pesca (!) – Fish-Ton.

Éramos adolescentes. Nosso trabalho era embalar anzóis, boias, chumbadas e outros artefatos para pesca que meu pai revendia nos supermercados de todo o Rio Grande do Sul. Tínhamos um gato vira-latas muito meigo, o Maragato, que nos acompanhava durante a lida diária.

Na pestana pós-almoço, Maragato curtia aninhar-se em cima de mim pra tirar seu cochilo felino. Fora encontrado em um bueiro defendendo a irmã gata do ataque das ratazanas. Um gato valente, o Maragato. Até hoje lhe sou saudoso e, por muitos motivos, ao rememorá-lo a melancolia invade meus sentimentos.

Pior agora: ao pensar em Maragato Jairo Caveman vem-me por tabela.

Nosso encontro foi motivado por The Kinks. Em 1992, arrumar uma fitinha cassete da banda inglesa era como, guardado os devidos parâmetros, ter acesso a uma cópia do álbum Paêbirú. Marcelo e eu trabalhávamos o dia inteiro ouvindo a Rádio Ipanema FM em um rádio Telefunken circa 1973. “Sintonia modular”.

Depois acoplamos um cassete-player e, quando a programação ficava chata, a gente apelava para as coisas que ambos ouviam na época: Velvet Underground, David Bowie, T-Rex. Um dia meu irmão arrumou vinil do álbum Tanx, do T-Rex, que trocou por uma bolacha qualquer. Ouvir o disco foi das experiências mais mágicas que tive com arte durante um tempo bem expressivo -até que descolasse um The Slider e um Eletric Warrior.

Na rádio tocava Kinks, “You Really Got Me”. Os dois ficavam naquelas, sempre que ouviam: “Que fissura pra ter um disco desses caras”. Nosso trabalho era às portas abertas e, num desses dias de Kinks on the radio, Jairo, recém mudado para o andar de cima, chegou-se até a entrada, ficou sacando o som um pouquinho e, arregalando seus olhos azuis-orbitais, soltou:

- Cês tão ouvindo Kinks?! Não acredito! Que massa!

A empatia foi no ato. Daí Jairo fez a grande revelação: – Eu tenho uma cassete dos Kinks.

Apavorado com a emoção da notícia, quase me deixei fisgar pelo anzol que embalava na hora. Subi até sua casa, conheci sua vó, com a qual morava e ele trouxe o The Best of The Kinks. Estava tudo lá: “All Day All Night”, “Lola”, “Set me Free”, “Tired of Waiting” – enfim, parte das canções mais lindas e pungentes um dia feitas no rock.

Quase chorei.

O tempo se foi, o grunge virou old fashioned e Jairo Willian Caveman mudou-se para outro bairro. Perdemos o contato. Fomos nos reencontrar em 1998, às cercanias do extinto Bar João, reduto dos street punks em Porto Alegre, hoje demolido. Reduto de punks que bebem cachaça, fazem artesanato e vestem camiseta da Janis Joplin, e outros tipos da fauna rock.

Jairo foi o cara mais punk que conheci em toda minha vida – no que há de mais verdadeiro nessa etimologia. Eu estava no meio da faculdade de jornalismo, precocemente era redator da Rádio Atântida de Porto Alegre e editava junto com colegas de faculdade a célebre Revista ZE. Jairo assumia-se como vagabundo. A vida inteira negou-se a trabalhar; sua grande preocupação era arrumar trocados pra comprar sua cachacinha de butiá no João e arrumar um baseado pra “fritar um bacon” -expressão de sua lavra.

Tinha motivos pessoais pra assumir a misantropia. Nunca o condenei pelas escolhas que fez. Jairo carregava um sentimento muito ruim, que pesava sobre sua cabeça: ter sido negado pelo próprio pai, homem bem-sucedido que o rejeitou desde criança deixando a sua família na pior. Crescera sob o signo do abandono, já que sua mãe, apesar de esforçada, ter se destacado pela falta de comunicação com o filho.

Jairo foi encontrar alento e algumas respostas (?) no punk. Quando voltei a encontrá-lo, também descobria no punk como encarar certas aflições. De Kinks, sem nunca abandoná-los, passamos à Buzzcocks, Sham 69, MC5, Stooges, Black Flag, Heartbreakers, New York Dolls, Pistols, The Boys (uma grande banda punk-mod que primeiramente ouvi com ele). Depois montamos uma “banda”: eu (guitarra), Francis (baixo), Alisson e Caveira (hoje na Bidê ou Balde), na bateria.

O Jairo era o crooner (mistura bem realística de Lux Interior com Robyn Tinner). Naquele tempo, Caveman desfilava frondoso corte de cabelo estilo White Panther. Os Dedicados Seguidores da Moda era o nome da banda. Barulho não faltava. O som, sim, é que era de menos. Eu atacava com um pedal Supper Fuzz Big Muff fabricado na União Soviética. Tinha cor de tanque de guerra, verde-exército, tamanho e peso de tijolo. A distorção era excruciantemente maravilhosa: soava como 1000 colmeias em dia de festa. Éramos muito ruins e, no repertório, apenas Buzzcocks, Kinks e Mudhoney.

Jairo, com o passar do tempo, ficava cada vez mais ensimesmado. Agora percebo que a coisa só degringolou de vez quando, sem dinheiro pra bancar suas diversões entorpecentes, começou a fazer michê na rua José Bonifácio, em Porto Alegre. Jairo era assim: quando soube que Dee Dee Ramone pagava seus vícios prestando serviços sexuais, sentiu-se legitimado pelo ídolo. Numa dessas vacilou sem camisinha.

Boatos a seu respeito corriam nas rodas dos “amigos”. Diziam, os maledicentes, que havia transado com fulano e sicrano. Faziam isso só pelo prazer mórbido de especular doentiamente. Uma maledicência pior que a da revista Veja. Jamais confessava sua doença aos outros. Comigo, sentia-se à vontade pra falar sobre tudo, de modo que, certa vez, me deu a entender sobre sua condição de saúde. Me chamava de Tom Verlaine…Jamais comentei com ninguém a sua confissão. Viveu até seus últimos dias confeccionando seus fanzines xerocados no melhor estilo Sniffin Glue. Seus textos eram mirabolantes e fantásticos, sempre com muito rock-and-roll e situações para as quais, agora, qualquer definição seria mero exercício minimalista.

Muitas vezes, tentei ajudá-lo pra ver se conseguia uma grana regular. Um desses fanzines era o Testemunhas de John Lennon. Ficava super feliz quando lhe dava umas revistas pra fazer suas colagens dadaísticas.

Inspirado em Jairo William Caveman, há quase uma década, escrevi o conto que – com todas suas imperfeições ortográficas e gramaticais originais -, um dia reproduzirei neste blog, sem me dar ao trabalho de corrigir: Flyng V: Innerspace, a história de um jovem suburbano abduzido por um casal de alienígenas swinggers.

Sua morte ocorreu há cerca de um mês. Tomamos conhecimento por um mero: “Tu sabia que o Jairo…” Uma amiga o tinha visto dias antes. Dissera estar “virado num palito”. Pegou uma gripe e terminou seu breve show de três acordes. Não sei o dia em que nasceu, tampouco, o que morreu. Mas nada disso tem importância. Na realidade, para Jairo, nada disso importaria mesmo.

Flyng V é uma fantasia baseada na sua vida naquele momento, em algum lugar no final dos anos 90: o cara que certa vez me confessou ter se masturbado “olhando uma estela no céu”. Essa história foi escrita após ter escutado tal relato. Ou melhor, escrevi pensando que a possibilidade imaginada seria uma forma plausível pra que superasse seus problemas terrenos.

Prefiro pensar na possibilidade onírica de sua morte à, simplesmente, imaginar que tenha ido ao céu ou ao inferno ou ao limbo. Não havia lugar pra Jairo Willian Caveman nesse mundo maniqueísta. Não sei se há em outros mundos.

P.S - Leia escutando The Kinks e bebendo uma cerva

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