O rock mudou a minha vida , abriu a minha cabeça e junto com tudo isso vieram as amizades mais sinceras , um sentimento complicado de colocar em palavras.
O jornalista Cristiano Bastos ( na minha modesta opinião o Lester Bangs brazuca ) no seu blog (http://oesquema.com.br/novacarne )fez um dos textos mais bonitos sobre esse assunto , uma homenagem sincera a um grande amigo dele.
Nascido Para Perder
A VIDA NOS DESFALCA SEM AVISAR, excluindo as melhores
pessoas de nossa convivência. Uma delas foi embora esses dias. A notícia de sua
morte chegou aos amigos por terceiros. Jairo William era o seu nome. Caveman,
seu auto-apelido.
Morreu por causa de complicações da Aids, aos 30 anos.
É uma obrigação minha falar dele, afinal, o conheci e
apresentei aos amigos meus que se tornaram os amigos dele em Porto Alegre:
Carlinhos Carneiro, Marcelo Benvenutti, entre muitos outros. Jairo e eu nos
conhecemos por causa do rock, essa é a verdade.
Por volta de 1992, auge do grunge, bairro Itú-Sabará,
Porto Alegre, berço da banda Liverpool nos anos 60. Caveman morava com a
família na parte superior do sobrado onde meu irmão, Marcelo, e eu trabalhávamos
para o meu pai em sua empresa de artigos de pesca (!) – Fish-Ton.
Éramos adolescentes. Nosso trabalho era embalar anzóis,
boias, chumbadas e outros artefatos para pesca que meu pai revendia nos
supermercados de todo o Rio Grande do Sul. Tínhamos um gato vira-latas muito
meigo, o Maragato, que nos acompanhava durante a lida diária.
Na pestana pós-almoço, Maragato curtia aninhar-se em cima
de mim pra tirar seu cochilo felino. Fora encontrado em um bueiro defendendo a
irmã gata do ataque das ratazanas. Um gato valente, o Maragato. Até hoje lhe
sou saudoso e, por muitos motivos, ao rememorá-lo a melancolia invade meus
sentimentos.
Pior agora: ao pensar em Maragato Jairo Caveman vem-me por
tabela.
Nosso encontro foi motivado por The Kinks. Em 1992, arrumar
uma fitinha cassete da banda inglesa era como, guardado os devidos parâmetros,
ter acesso a uma cópia do álbum Paêbirú. Marcelo e eu trabalhávamos o dia
inteiro ouvindo a Rádio Ipanema FM em um rádio Telefunken circa 1973. “Sintonia
modular”.
Depois acoplamos um cassete-player e, quando a programação
ficava chata, a gente apelava para as coisas que ambos ouviam na época: Velvet
Underground, David Bowie, T-Rex. Um dia meu irmão arrumou vinil do álbum Tanx,
do T-Rex, que trocou por uma bolacha qualquer. Ouvir o disco foi das
experiências mais mágicas que tive com arte durante um tempo bem expressivo
-até que descolasse um The Slider e um Eletric Warrior.
Na rádio tocava Kinks, “You Really Got Me”. Os dois
ficavam naquelas, sempre que ouviam: “Que fissura pra ter um disco desses
caras”. Nosso trabalho era às portas abertas e, num desses dias de Kinks on the
radio, Jairo, recém mudado para o andar de cima, chegou-se até a entrada, ficou
sacando o som um pouquinho e, arregalando seus olhos azuis-orbitais, soltou:
- Cês tão ouvindo Kinks?! Não acredito! Que massa!
A empatia foi no ato. Daí Jairo fez a grande revelação: –
Eu tenho uma cassete dos Kinks.
Apavorado com a emoção da notícia, quase me deixei fisgar
pelo anzol que embalava na hora. Subi até sua casa, conheci sua vó, com a qual
morava e ele trouxe o The Best of The Kinks. Estava tudo lá: “All Day All
Night”, “Lola”, “Set me Free”, “Tired of Waiting” – enfim, parte das canções
mais lindas e pungentes um dia feitas no rock.
Quase chorei.
O tempo se foi, o grunge virou old fashioned e Jairo
Willian Caveman mudou-se para outro bairro. Perdemos o contato. Fomos nos
reencontrar em 1998, às cercanias do extinto Bar João, reduto dos street punks
em Porto Alegre, hoje demolido. Reduto de punks que bebem cachaça, fazem
artesanato e vestem camiseta da Janis Joplin, e outros tipos da fauna rock.
Jairo foi o cara mais punk que conheci em toda minha vida
– no que há de mais verdadeiro nessa etimologia. Eu estava no meio da faculdade
de jornalismo, precocemente era redator da Rádio Atântida de Porto Alegre e
editava junto com colegas de faculdade a célebre Revista ZE. Jairo assumia-se
como vagabundo. A vida inteira negou-se a trabalhar; sua grande preocupação era
arrumar trocados pra comprar sua cachacinha de butiá no João e arrumar um
baseado pra “fritar um bacon” -expressão de sua lavra.
Tinha motivos pessoais pra assumir a misantropia. Nunca o
condenei pelas escolhas que fez. Jairo carregava um sentimento muito ruim, que
pesava sobre sua cabeça: ter sido negado pelo próprio pai, homem bem-sucedido
que o rejeitou desde criança deixando a sua família na pior. Crescera sob o
signo do abandono, já que sua mãe, apesar de esforçada, ter se destacado pela
falta de comunicação com o filho.
Jairo foi encontrar alento e algumas respostas (?) no
punk. Quando voltei a encontrá-lo, também descobria no punk como encarar certas
aflições. De Kinks, sem nunca abandoná-los, passamos à Buzzcocks, Sham 69, MC5,
Stooges, Black Flag, Heartbreakers, New York Dolls, Pistols, The Boys (uma
grande banda punk-mod que primeiramente ouvi com ele). Depois montamos uma
“banda”: eu (guitarra), Francis (baixo), Alisson e Caveira (hoje na Bidê ou
Balde), na bateria.
O Jairo era o crooner (mistura bem realística de Lux
Interior com Robyn Tinner). Naquele tempo, Caveman desfilava frondoso corte de
cabelo estilo White Panther. Os Dedicados Seguidores da Moda era o nome da
banda. Barulho não faltava. O som, sim, é que era de menos. Eu atacava com um
pedal Supper Fuzz Big Muff fabricado na União Soviética. Tinha cor de tanque de
guerra, verde-exército, tamanho e peso de tijolo. A distorção era
excruciantemente maravilhosa: soava como 1000 colmeias em dia de festa. Éramos
muito ruins e, no repertório, apenas Buzzcocks, Kinks e Mudhoney.
Jairo, com o passar do tempo, ficava cada vez mais
ensimesmado. Agora percebo que a coisa só degringolou de vez quando, sem
dinheiro pra bancar suas diversões entorpecentes, começou a fazer michê na rua
José Bonifácio, em Porto Alegre. Jairo era assim: quando soube que Dee Dee
Ramone pagava seus vícios prestando serviços sexuais, sentiu-se legitimado pelo
ídolo. Numa dessas vacilou sem camisinha.
Boatos a seu respeito corriam nas rodas dos “amigos”.
Diziam, os maledicentes, que havia transado com fulano e sicrano. Faziam isso
só pelo prazer mórbido de especular doentiamente. Uma maledicência pior que a
da revista Veja. Jamais confessava sua doença aos outros. Comigo, sentia-se à
vontade pra falar sobre tudo, de modo que, certa vez, me deu a entender sobre
sua condição de saúde. Me chamava de Tom Verlaine…Jamais comentei com ninguém a
sua confissão. Viveu até seus últimos dias confeccionando seus fanzines
xerocados no melhor estilo Sniffin Glue. Seus textos eram mirabolantes e
fantásticos, sempre com muito rock-and-roll e situações para as quais, agora,
qualquer definição seria mero exercício minimalista.
Muitas vezes, tentei ajudá-lo pra ver se conseguia uma
grana regular. Um desses fanzines era o Testemunhas de John Lennon. Ficava
super feliz quando lhe dava umas revistas pra fazer suas colagens dadaísticas.
Inspirado em Jairo William Caveman, há quase uma década,
escrevi o conto que – com todas suas imperfeições ortográficas e gramaticais
originais -, um dia reproduzirei neste blog, sem me dar ao trabalho de
corrigir: Flyng V: Innerspace, a história de um jovem suburbano abduzido por um
casal de alienígenas swinggers.
Sua morte ocorreu há cerca de um mês. Tomamos conhecimento
por um mero: “Tu sabia que o Jairo…” Uma amiga o tinha visto dias antes.
Dissera estar “virado num palito”. Pegou uma gripe e terminou seu breve show de
três acordes. Não sei o dia em que nasceu, tampouco, o que morreu. Mas nada
disso tem importância. Na realidade, para Jairo, nada disso importaria mesmo.
Flyng V é uma fantasia baseada na sua vida naquele
momento, em algum lugar no final dos anos 90: o cara que certa vez me confessou
ter se masturbado “olhando uma estela no céu”. Essa história foi escrita após
ter escutado tal relato. Ou melhor, escrevi pensando que a possibilidade
imaginada seria uma forma plausível pra que superasse seus problemas terrenos.
Prefiro pensar na possibilidade onírica de sua morte à,
simplesmente, imaginar que tenha ido ao céu ou ao inferno ou ao limbo. Não
havia lugar pra Jairo Willian Caveman nesse mundo maniqueísta. Não sei se há em
outros mundos.
P.S - Leia escutando The Kinks e bebendo uma cerva
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