Pegue uma cabeça adolescente e coloque dentro dela, pela orelha, Rolling Stones, Beatles, Kinks, Animals e Yardbirds. Não esqueça de pôr pitadas de Chuck Berry, Eddie Cochran ou Little Richard. Agora bata tudo no liquidificador cerebral, acrescentando desespero adolescente, namoros de colégio, aflição, vontade de trepar e fúria juvenil. Ofereça ao dono da cabeça uma guitarra elétrica barata, amplificadores de mesmo custo, bateria, baixo e se possível um órgão vagabundo. Sendo essa batida feita nos anos 60 você teria uma típica banda de garagem.
Provavelmente um dos fenômenos mais democráticos do rock e antecedendo em mais de uma década nosso tão querido punk rock de 1977, o garage rock dos anos 60 foi um fenômeno que praticamente ocorreu em todo o mundo. Basta dar uma olhada nas centenas de coletâneas do estilo, que perpassam regiões do globo as mais variadas e inusitadas como África, Oceania, América Latina, Ásia e o Leste Europeu – vivendo ainda num contexto histórico de Guerra Fria (1947-1991). E jamais podemos esquecer a América do Norte, com todo o efeito que a British Invasion causou em seus jovens.
Quando digo democrático é porque é infindável o número de bandas amadoras, outras nem tanto, que surgiram do período que vai de mais ou menos 1964 a 1968. Quatro anos que viram milhares de bandas pipocarem não só nos EUA, mas no mundo e que as coletâneas de garage são prova disso, sempre resgatando alguma obscuridade de quarenta anos atrás.
Inspirados geralmente em Beatles e Rolling Stones, mas também pela British Invasion linha-dura de Troggs, Yardbirds e Pretty Things, milhões de adolescentes cortaram seus cabelos em forma de tigela (mop top), se armaram de guitarras baratas e se meteram em garagens, sejam elas em Paris, Texas ou São Paulo. Assim, acabaram criando, com seus escassos recursos, pérolas de um rock adolescente, simples, cru, urgente e apaixonante, que só os anos 60 poderiam ser os provedores.
Querendo soar como seus ídolos ingleses, mas sem a "técnica musical" necessária, deram origem a uma mutação punk da Invasão Britânica. Talvez por serem jovens demais não entenderam que os ingleses estavam apenas devolvendo à juventude norte-americana e mundial o Rhythm & Blues negro dos anos 40 e 50, só que digerido pelo suco gástrico britânico.
A banda suburbana de Chicago, The Shadows of Knight, talvez seja uma das poucas que entenderam isso e ilustram melhor essa estranha dialética do “toma lá, dá cá” do rock and roll. Numa antiga entrevista à Hit Parader, os Shadows diziam que os Stones, Animals e Yardbirds pegaram o blues elétrico de Chicago e lhe deram uma interpretação inglesa. Por sua vez os Shadows pegaram a versão inglesa do blues de sua terra natal e acrescentaram a ele mais um toque de Chicago. No final das contas o que poderia resultar numa fotocópia ruim, acabou soando original, com o Shadows of Knight nos mostrando sua interpretação punk da Invasão Britânica e do blues elétrico, criando um amálgama sonoro afro-americano-anglo-saxão.
A Primeira Era Punk
“O punk começou nos anos sessenta com bandas de garagem como The Seeds e Question Mark & The Mysterians. Punk é apenas o bom rock and roll básico, com riffs bem bons.” Nancy Spugen, Mate-me Por Favor
Muitas pessoas tendem a achar que o boom do punk entre 1976-1977 foi algo de extremamente novo no universo do rock, o que geralmente é reforçado pelas revistas de música. O resultado é que acabam se espantando ou acham que é forçar a barra chamar de punk o rock feito pelas bandas de garagem dos anos 60 como The Sonics, Los Saicos, The Seeds, entre outras.
Mas voltando um pouco na história se percebe que o adjetivo/termo punk foi usado no meio musical primeiramente não para se referir as bandas de 1977, mas sim para rotular a sonoridade das bandas de garagem dos anos 60. Lenny Keye, o idealizador das coletâneas Nuggets e posteriormente guitarrista do Patti Smith Group, já em 1972 assim se referia a produção jovem e garageira dos anos 60.
Em 1976-77 o termo foi mais resgatado do que criado, mas acabou por se reconfigurar no contexto do rock do final dos anos 70 e se multifacetar pela moda, artes gráficas e outras expressões artísticas para além da música.
Parte do desconhecimento da epidemia garageria mundial, entendida por muitos críticos como a Primeira Era Punk ocorrida nos anos 60, se deve ao fato do estilo ser negligenciado em diversas “Histórias do Rock”, como bem nos lembra Roy Shuker em seu livro Vocabulário de Música Pop.
O garage foi um estilo construído nos anos 60 por bandas, selos e cenários regionais como o texano ou o californiano nos EUA e por milhões de compactos de 45 rpm. Em geral, foram poucos os grupos que conseguiram lançar um Lp completo. Talvez essa falta de glamour cinematográfico possa ser outra explicação do pouco reconhecimento do gênero.
1967-1968: Sai o Raw Power entra o Flower Power
Entre 1967-1968 o fenômeno das bandas de garagem começa a entrar em recessão nos EUA. Roy Shuker cita como causas deste declínio o recrutamento para a Guerra do Vietnã (1959-1975), a necessidade de frequentar a universidade e a falta de sucesso comercial das bandas. Era a adolescência chegando ao fim e as obrigações da vida adulta começando a surgir. Eram os amigos de colégio que teriam que acabar a banda porque cada um ia para uma universidade diferente ou para a guerra.
Tim Warren da Crypt Records, o homem por trás das lendárias compilações Back From The Grave, chega a afirmar, em tom de polêmica, que 1968 foi um ano morto para o rock and roll. Warren privilegiou nos 12 volumes em Lp de sua compilação somente o garage mais cru e selvagem dos anos 60. Ele encara a ascensão da psicodelia como o fim do garage e até do rock and roll em geral. De fato, as bandas que vinham de um passado garageiro, como o Eletric Prunes, que continuaram pós-1967, tenderam para a sonoridade mais climática e viajadona da psicodelia, que em 1968 já reinava soberana. Saia o Raw Power e entrava em cena o Flower Power.
Psychedelic era a nova palavra e a novidade daquele final de década, era para onde os olhos, ouvidos e mentes estavam direcionados. Por aqui, Mutantes e Caetano cantando Alegria, Alegria e a tropicália mostrando a cara. Na Costa Oeste americana, os hippies surgiam em cada esquina com seu flower power e demais parafernálias filosóficas que iam desde o desbunde total e a volta do On The Road beatnick, passando pela abertura das portas da percepção, até chegar na Nova Era e nos gurus indianos.
Talvez, fazer um som cru e urgente naquele período no qual os Beatles lançavam ao mundo seu Sgt Pepper’s e o experimentalismo fazia sucesso, poderia soar datado. A opinião de Warren pode ser mais bem compreendida em temos de consequências, ou alguém duvida que o desenvolvimento da psicodelia tenha desaguado em coisas “semi-barrocas” como o rock progressivo?
Contudo, para os punks de plantão, nem tudo estava perdido. Lá no final do túnel, em 1969, ainda teríamos os Stooges e o MC5 chutando tudo. Sem esquecer do Flamin’ Groovis, isolados com seu rock and roll básico naquele mar de flores hippies que era San Francisco na época.
Os anos 70 estavam chegando e com ele várias surpresas para o rock and roll: Glam rock, New York Dolls, Dictators, Ramones, Richard Hell e a blank generation.
1977: o retorno do Raw Power e a herança garageira
Timothy Gassen em seu livro The Knights of Fuzz afirma que a explosão do punk em 1976-77 provocou um renovado interesse pelas bandas de garagem dos anos 60, com as quais as bandas de 77 compartilhavam atitude espontânea e sonoridade crua. A similaridade entre os dois estilos era tamanha que apesar de existirem em contextos e épocas diferentes, ambos levaram a mesma alcunha, ou seja, punk!
Os punks de 1977 e também os que viriam depois deles, acabaram sempre voltando às garagens dos anos 60 e homenageando seus predecessores. Isso fica claro nos covers e versões: os Sex Pistols tocando No Fun dos Stooges, o Buzzcocks com I Cant’ Control Myself do Troggs e o The Clash, em seu primeiro Lp, cantando I Fought The Law do Bob Fuller Four.
Na década de 80, o Black Flag vem com Louie Louie, um R&B negro popularizado nos anos 60 pelo grupo de frat rock The Kingsmem e o Minor Threat de Washington regrava Sometimes Good Guys Dont’ Wear White, original do Standells, atualizando o clássico Nuggets para a era hardcore. Nos anos 90, os Ramones vem com todo um álbum, o Acid Eaters, dedicado aos anos 60, resgatando muitos de seus heróis garageiros como Seeds, Love, Amboy Dukes e Troggs.
Para não dizer que estou falando apenas de gente velha, tocando música de gente mais velha ainda, a recente banda canadense de hardcore Career Suicide afirmou, em entrevista, serem sido muito mais influenciados por coletâneas garage como Nuggets ou Pebbles, do que pelas clássicas compilações hardcore como American Youth Report ou Flex Your Head.
De Volta ao Passado: o “revival” garage nos anos 80
Esse interesse pelo garage rock ganharia corpo de forma material no começo dos anos 80 nos EUA. A América do Norte estava experimentando naquele período não só o surgimento do hardcore, como também uma retomada com muita força do estilo garage. Tudo isso consequência direta do que ocorreu em 77.
Nesse período temos o surgimento de uma nova juventude garageira, obcecada não só pelo som das garage bands dos anos 60, mas também pelas roupas, cabelos e instrumentos. O pacote completo. Foi o início de uma cena que reviveu todos os maneirismos do garage rock e que contava com gente como Chesterfild Kings, Miracle Workers, Crawdaddys, Cynics, Fuzztones, The Guesomes, Gravedigger V e Lyres.
Vale ressaltar o papel preponderante que as compilações como Nuggets e Pebbles exerceram, pois foi a partir delas que muitos moleques passaram a ouvir Music Machine, The Seeds, The Sonics e demais barulheiras sixties.
Parte desse cenário está documentado na compilação Battle of The Garages. Greg Shawn da Bomp Records e Bomp Magazine foi esperto o bastante para perceber esse novo cenário que emergia e o registrou nessa compilação, além de realizar duas turnês nacionais com as bandas. A coletânea saiu pela subsidiária da Bomp, a Voxx Records que tinha como missão dar conta desse retorno das guitarras fuzz, dos cabelos mop top e dos terninhos, lançando discos das bandas da nova safra garageira como Pandoras e Barracudas.
A Europa, de forma mais amena, também experimentou a volta das sonoridades sixties nos anos 80. Esse retorno está registrado na compilação A Splash of Colour, de tendência mais psicodélica do que garage, lançada em 1981 e que trazia nomes como The Doctor, The Times e Mood Six.
Esse “revival” experimentado nos 80 se prolongou por toda a década de 90 com The Mummies, os Headcoats e as Headcotees, Oblivians, Gories, chegando até o século XXI com Black Lips, as bandas do prolífico Billy Childish, Fuzzztones (ainda hoje na ativa), entre outros novos nomes. É nessas horas que a palavra revival não faz sentido, visto que o estilo nunca esteve totalmente enterrado e sempre serviu de inspiração, seja de forma indireta como foi em 77, seja diretamente como foi nos anos 80. E mesmo passados mais de quarenta anos, ainda é reivindicado por vários grupos.
O garage “vai passando muito bem obrigado”, como um gênero que nunca precisou de apelo comercial e que sempre contou com a participação ativa de seus amantes, aficionadas e colecionadores. Ele ainda está aqui com nós, seja nas publicações como Ugly Things, Lost in Time ou Sótano Beat; nos selos Groovie Records de Portugal, Munster na Espanha, No Fun da Argentina ou Estrus e Crypt nos EUA. Em bandas como Os Haxixins aqui no Brasil ou Los Peyotes ali no Peru. E em festivais como o Cavestomp! em Nova Iorque ou o Teenage Attack Festival em Pisticci, Itália.
O garage faz parte do mesmo vírus punk que vem alimentando o rock and roll através de décadas, nunca o deixando esquecer do espírito jovem e inconsequente, da crueza e dos três acordes. No final das contas, enquanto houver um adolescente (com todos os benefícios e males que este período da vida traz) com uma guitarra na mão e amigos numa banda, o que você chama de garage ou punk nunca estará enterrado e o rock and roll estará vivo, divertindo e incomodando as futuras gerações.
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