sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Punks & Hippies

Eleito pela revista Time um dos norte-americanos mais influentes do século XX, Edward Bernays foi o criador da propaganda moderna. Ele utilizou as ideias de seu tio, Sigmund Freud, para manipular as emoções e os desejos das massas. Bernays acreditava que, ao conhecer as motivações das pessoas, seria possível influenciar seu comportamento sem que elas se dessem conta disso. Ao vincular bens materiais a desejos inconscientes, Bernays ensinou às indústrias como fazer as pessoas desejarem algo de que não precisam de fato.

A propaganda não se limitaria mais a apresentar o produto e a informar sobre suas qualidades. Agora, a publicidade teria o objetivo de influenciar a audiência, produzindo respostas emocionais e não racionais aos produtos. Nesse momento, surge a noção de consumismo como é compreendida atualmente, tornando-se uma forma de explorar mentes, emoções e identidades das pessoas. Medos e inseguranças são manipulados de modo a serem traduzidos em desejos de produtos materiais, e a sociedade é então condicionada a desejar sempre além.

Para aumentar o desejo das pessoas, o consumismo instiga as inseguranças e as carências emocionais, gerando cada vez mais ansiedade e depressão nos indivíduos. Tal fato ocorre pois a propaganda na cultura consumista é baseada em uma falsa promessa de felicidade. Os bens materiais são vendidos como uma forma de suprir carências que não são do âmbito material. Estimula-se a busca da solução de problemas emocionais através da aquisição de produtos comerciais. A propaganda vende a ideia de que mais produtos nos farão mais amados, mais estimados, mais felizes e mais valorizados. A verdade é que, quanto mais tempo o indivíduo gasta focado na aquisição dos bens, menos tempo ele possui para cultivar vínculos afetivos com a família, os amigos e a comunidade.

A dinâmica “mais produtos = menos vínculos” não foi pensada ao acaso. Bernays acreditava que as massas eram irracionais e perigosas e que deveriam ser controladas. Para ele, a democracia sem o controle da população configurava um fator de risco para a estabilidade social. Nesse sentido, seu método de propaganda buscava manter as massas ocupadas em busca da felicidade através de bens materiais. Quanto mais o consumismo é estimulado, menos as pessoas se interessam pela participação ativa na política.

Na cultura consumista, as pessoas são induzidas a acreditar que a felicidade não depende do Estado ou da sociedade, mas dos produtos criados pelas empresas. O cidadão que busca a realização pessoal através da participação política transforma-se no consumidor que passivamente aguarda as empresas realizarem seus desejos. A liberdade política torna-se então a liberdade de consumir. Dessa forma, a combinação de democracia e consumismo é a fórmula perfeita para manter o povo longe do poder e preservar o status quo.

 Além da apatia política, a cultura consumista estimula o egoísmo, a inveja e promove a desagregação social. Em uma sociedade baseada no consumismo, não basta ter o suficiente para viver bem; o consumismo é comparativo. Assim, manipula-se o desejo a fim de possuir mais do que o outro: mais do que o vizinho, mais do que o colega de trabalho, mais do que as pessoas que aparecem nas mídias sociais e tradicionais. Isso gera uma infinita insatisfação e um ciclo de consumo cada vez em proporções maiores. As pessoas tornam-se isoladas, centradas nos próprios desejos; e, por sua vez, a sociedade é construída de forma mais fragmentada.

O consumo tem se consolidado como o objetivo central da vida pessoal, arregimentando as esferas do lazer, da cultura, da vida social e familiar. Os shoppings estabeleceram-se como novos templos de dedicados súditos, espaços nos quais as pessoas reúnem-se, consomem e passam seu tempo livre. Entretanto, deve-se observar que, ao contrário dos antigos templos e das praças públicas, nos shoppings a vida social se empobrece e é reduzida ao simples ato solitário de comprar.

Porém, o consumismo nem sempre triunfou sem oposição. Algumas vozes dissonantes surgiram no decorrer do século XX. Dentre elas, as mais expressivas estão ligadas à cultura hippie nos anos 1960, e do movimento punk, nos anos 1970.

A cultura hippie floresceu nos anos 1960 nos EUA, epicentro do consumismo. Os hippies rejeitavam as hierarquias e as instituições estabelecidas, contestavam os valores da classe média, opunham-se às armas nucleares e à guerra e eram comumente vegetarianos. Eles utilizavam-se de artes alternativas como o teatro de rua e o rock psicodélico para expressar suas ideias e valores. Opondo-se à política tradicional, cultivavam ideias não doutrinárias e libertárias em favor da paz, do amor e da vida em comunidade.

Desiludidos pela sociedade moderna extremante individualista, egoísta e competitiva, decidiram viver em comunidades próprias e independentes, adotando um estilo de vida coletivo que estimulava a cooperação e a comunhão com a natureza. Nessas comunidades, as decisões são consideradas coletivamente, não havendo hierarquias, e todos os participantes exercem alguma função. Adota-se como prática o cultivo dos próprios alimentos e o comércio ocorre entre os moradores através da troca ou da permuta.

Já a cultura punk surgiu nos anos 1970 nos EUA e na Inglaterra. Ela se caracteriza por ser um movimento extremamente urbano que, de forma ampla, defende uma visão anarquista centrada na autonomia do indivíduo, opondo-se à mídia tradicional, ao Estado, às instituições religiosas e às grandes corporações capitalistas.

A primeira manifestação cultural do punk foi no âmbito musical. O punk rock surge como a retomada de um estilo autêntico, no qual o mais importante é a expressão individual, pois os membros estavam profundamente decepcionados com a cena do rock que, na época, se mostrava vinculada à grande indústria da música. O showbizz americano e inglês tinha como preocupação produzir estrelas e divulgá-las em grandes shows, criando artistas que, na visão dos punks, careciam de autenticidade.

Assim, a cultura punk começou a produzir músicas curtas e bastante simples, tocadas com pouco mais do que três acordes, sendo facilmente reproduzidas por qualquer pessoa sem formação musical. Essa concepção musical tinha como objetivo instigar outros jovens a criar suas próprias bandas. Surgia então uma grande expressão do anticonsumismo: a cultura do “faça você mesmo” (do inglês do it yourself – DIY).

O princípio do “faça você mesmo” relaciona-se ao questionamento tanto da necessidade de comprar coisas quanto dos processos existentes que impulsionam a dependência do indivíduo às estruturas sociais vigentes. De acordo com a cultura punk, os indivíduos podem se expressar e produzir trabalhos sérios, ainda que com recursos limitados. As bandas punks gravavam suas próprias músicas, produziam e distribuíam os álbuns, e se apresentavam em garagens ou em porões, evitando o controle das grandes corporações e assegurando a liberdade de suas performances. Suas ideias circulavam através de fanzines, isto é, publicações caseiras realizadas, editadas e distribuídas por fãs.

Aparentemente, esses dois movimentos culturais perderam a força inicial após alguns anos, tendo sido, de certa forma, assimilados pela moda e pela sociedade consumista, ainda que isso soe paradoxal. Entretanto, pode-se afirmar que suas ideias demonstravam força suficiente para, cinquenta anos depois, ressurgirem como uma possibilidade alternativa à atual cultura de consumo.

Na verdade, longe de estarem esquecidos, muitos desses valores permanecem na nossa cultura em áreas inusitadas. É possível afirmar que a contracultura dos anos 1960 promoveu o desenvolvimento do computador pessoal e a organização da internet. A concepção de uma grande rede mundial sem fronteiras, sem qualquer autoridade central, na qual indivíduos são livres para compartilhar informações, deve-se à influência hippie da cultura americana. Os valores hippies baseados nas ideias de comunhão e de colaboração mostram-se cada vez mais presentes no mundo virtual e tecnológico. Exemplo disso são os sites de construção coletiva estilo wiki; bem como os softwares livres e de código aberto, nos quais todos podem contribuir livremente e de forma espontânea para o desenvolvimento, o compartilhamento, a edição e a difusão de ideias e de conhecimento.

Na sociedade contemporânea, a internet permite o compartilhamento de ideias, tornando-se um instrumento capaz de estimular novas formas de consumo e de conexão entre as pessoas. A noção de consumo colaborativo vem crescendo em meio à troca de ideias, pondo em cena práticas alternativas que envolvem trocar, emprestar, reusar e revender objetos. Torna-se cada vez mais comum grupos que se organizam e se reúnem a fim de trocar roupas, brinquedos e livros; planejando caronas; compartilhando carros e aparelhos eletrônicos; praticando a permuta de serviços; fazendo uso do sistema de book crossing ou couchsurfing. As atividades são realizadas e negociadas diretamente entre as pessoas, estimulando os laços de comunidade e permitindo viver bem com menos dinheiro. Em tais práticas, o indivíduo é valorizado pelo modo como interage com a comunidade, marcando o surgimento de um novo tipo de capital: o capital social.

O movimento do “faça você mesmo” hoje é mais presente do que nunca. Através de vídeos e aulas pela internet, na rede é possível ter acesso a possibilidades infinitas de aprender a produzir e a divulgar suas próprias realizações, fugindo da cultura passiva consumista e buscando a realização pessoal de forma ativa. Hoje pode-se plantar vegetais em casa, fazer cerveja caseira, costurar as próprias roupas e até mesmo produzir objetos manufaturados.

A produção pode ser individual ou coletiva, e os objetos podem ser feitos para o próprio consumo ou para a venda, pois o século XXI aumentou a produtividade da produção de pequena escala. Pode-se exercitar a criatividade, desenvolver novas habilidades e talentos e a criatividade em novas formas de produzir bens de consumo. A ética do “faça você mesmo” dá poder aos indivíduos e às comunidades, encorajando o emprego de abordagens alternativas para a solução de problemas.

Assim, observa-se que a sociedade consumista enfraquece os laços sociais, estimula o individualismo, e retira a autonomia dos indivíduos, que se tornam consumidores passivos, cujo único poder é a escolha entre a marca A ou a marca B. Em contrapartida, a cultura hippie e seus ideais fortalecem a ideia de coletividade e de colaboração. O princípio do “faça você mesmo” estimula a autonomia, dá poder e liberdade aos indivíduos.

Um novo modelo cultural pode entrar em cena, criado à luz de ações que priorizam a partilha de produtos e de conhecimentos, a produção de bens de consumo, e o comprometimento crítico por seu modo de vida, a fim de consolidar conexões sociais e comunitárias.

Meio século depois do surgimento dos hippies, eles e os punks são mais atuais que nunca: já temos todas as ferramentas que possibilitam promover uma sociedade mais feliz, socialmente mais justa e ecologicamente sustentável, bem como o desenvolvimento de uma economia de abordagem essencialmente humana, e não simplesmente monetária. Teremos coragem para usá-los?

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